top of page

Seguindo o rastro do pavio

Lucas Albuquerque

Ustão nasce de um sonho. A artista carioca Ayla Tavares relata a aparição de uma vela que queimava ao contrário, uma cena sonhada durante o auge da pandemia de COVID-19 no ano de 2020. A imagem enigmática, que beira o absurdo pela impossibilidade de consumação da vela em seu desafio gravitacional, mostra-se muito recorrente, contudo, em simpatias para desfazer quebrantos, retornando-o ao seu emissor ou anulando-o. Funcionou, em um primeiro instante, como ferramenta de autodefesa contra o caos externo vivenciado naquele momento.

 

O que nasceu como imagem onírica agora toma corpo e rasteja dentro de uma outra casa, fruto de um sonho tão delirante quanto o da artista. Durante a década de 1980, Eva Klabin decide unir colecionismo ao desejo de fundar um acervo público capaz de circunscrever séculos da cultura material humana, do antigo Egito até o início do século XX. Entre Ocidente e Oriente, sua vasta coleção e admirável empreitada dá o tom de um gosto de época fincado nos cânones de uma história da arte eurocêntrica, ainda que aberta a vertentes não europeias em sua radical alteridade. A casa criada com função totalizante adquire na contemporaneidade novas leituras e intervenções, lembrando à Eva que não somos senhores em nosso próprio lar.

 

Resultado da pesquisa guiada ao longo de oito semanas pela coleção, o conjunto que forma Ustão é pautado, em um primeiro momento, pelo interesse da artista em torno do conjunto de candelabros britânicos reunidos na Sala de Jantar, mas que se espalha, logo em seguida, por outros suportes que integram os ambientes. Curiosamente, a atração surge não pelas qualidades estéticas das peças selecionadas, mas pelo mise-en-scène da casa, cujo mínimo arranjo tem como objetivo recriar as condições ideais em que a vida de sua fundadora se desenrolou. Basta apurar os ouvidos, ouriçar o tato, lançar o olhar por detrás do véu do visível: lá estão, mais uma vez, as taças a tilintar, a prataria a arranhar a porcelana branca, o burburinho do arrastrar de cadeiras. E o fogo emana do centro de cada vela, encantando a todos com sua perigosa dança em combustão.

 

Abra novamente os olhos. Cá estamos hoje, arraigados neste cenário. A cera intacta da vela é apenas um dos índices de que o tempo tornou a virar. Cristalizou-se. Como seguir o rastro da fumaça quando nem mesmo o pavio indica a sua possibilidade?

 

A montagem aqui apresentada de Ustão, série iniciada em 2022 por Ayla, adquire novas incursões fundadas no desejo de investigar o fogo em sua condição ritualística. As primeiras aparições tomam vida em peças de grandes dimensões produzidas em cerâmica cozida e esmaltada na cor branca. Sua base surge em forma expansiva e circular, enquanto o caminho que leva às pontas torna-se gradativamente tortuoso. A mutação ocorre com o surgimento de tentáculos curvilíneos cujas extremidades se transmutam uma segunda vez, agora em materialidade: a cerâmica dá lugar à cera pálida, de onde se projetam velas voltadas para os lados ou levemente para baixo. Erguidos em finas estruturas de aço, parecem levitar, em franca contradição ao seu peso aparente. Suas formas subsequentes, comissionadas a convite deste programa, dispensam a estrutura e materializam-se em configurações de médio a pequeno porte, traçando uma semelhança visual mais direta com os candelabros. Como efeito, as velas inclinadas perturbam a montagem original da casa, já que cada peça ocupa a posição de candelabro pertencente à coleção. A artista opera, portanto, a metamorfose de todos os objetos de caráter funcional que sustentam velas a serviço da irrupção de outras narrativas.

 

Somada à estranheza dos deslocamentos, gavetas se abrem deixando entrever na penumbra um outro imaginário. Em seu interior, placas brancas carregam formas e ranhuras que evocam uma nova malha espaço-temporal. Acima de arabescos, pequenas janelas emergem, revelando desenhos de esculturas que compõem a série Ustão. Ora acesas, ora apagadas. Vistas de cima, as composições aludem a mapas cujas janelas pinçam, aqui e acolá, o vislumbre da forma. Tratam-se de chamadas de volta para o sonho; talvez o mesmo que içara Ustão à vida. Por vezes lido como terra, outras como mar, o último plano aponta tanto para a relação arqueológica cultivada pela artista, que traça uma genealogia direta com os objetos usualmente encontrados em expedições científicas – em suma, peças esculpidas em cerâmica, cuja numerosa recorrência as identificam como o "objeto eterno" – quanto para sua prática de modelagem extremamente intuitiva e primária, sugerindo uma memória arcaica do corpo com a matéria em questão. Os mesmos arabescos, entretanto, se pensados como imagem abstrata do fluxo do inconsciente, distanciam Ayla do arquétipo do arqueólogo e a consagram como uma conjuradora. O limiar entre as duas figuras se dilui, porém, na análise da raiz etimológica das palavras: arché, termo grego surgido no período pré-socrático, designa a substância originária, fundadora de um sistema. Dentro dessa leitura, a prática de Ayla revira o solo em busca do sonho como ponto inicial, como instaurador de mundos cuja impossibilidade de compreensão lógica funda a ordem. Faz-se aqui o seu quebra-feitiço.

 

Buscando trazer o acervo como o norteador da pesquisa em que esta individual se origina, duas peças são destacadas em virtude de sua relação direta com o fogo. Erguendo-se ao centro da Sala Renascença, o Grou tailandês, produzido no século XIX em bronze fundido, empina sua cauda cheia e comprida, cujo formato e ondulação lembram uma chama. Símbolo de longevidade para o Budismo Tibetano, a ave tinha como função transportar almas até o paraíso. Já na Sala Chinesa, uma escultura de data desconhecida, também em bronze e oriunda da China, figura o Maitreya em seu estado de iluminação, envolto por um portal em chamas que o confirma como o futuro Buda. Ambas demarcam o início e o fim do percurso dentro da individual da artista, fazendo surgir, senão o próprio fogo em presença, seu rastro.

--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Alfarería del agua

Aldones Nino

Durante os meses de setembro a dezembro de 2022, Collegium iniciou seu programa de residências “Entre Tiempos”, contando com a colaboração do Instituto Inclusartiz, a partir do apoio à investigação da artista Ayla Tavares. Durante esses meses, Ayla propôs vários pontos de contato, tanto com a tradição da cerâmica na região, como com o entorno histórico, paisagístico e fluvial de Arévalo. Essa mostra tem como interesse apresentar os projetos desenvolvidos no seu ateliê situado no antigo coro da Igreja de San Martin, situada na Plaza de la Villa de Arévalo.

Parte central deste processo foi a colaboração com a Alfareria Hernandez que integra a Federação das Organizações Artesãs de Castilla y León (FOACAL) e o intenso processo de aprendizado junto a ceramista Vicen Hernandez. Esta alfareria vem transmitindo o ofício há gerações, colaborando assim com a construção e a manutenção da tradição cerâmica, e está localizada em Cespedosa de Tormes, município que conta com uma população de 585 habitantes. Esse projeto incluiu também jornadas de trabalho no ateliê do escultor Julio Galán, em Arévalo, que há mais de três décadas realiza esculturas monumentais que se espalham pelo entorno.

Litificação é um conjunto de processos que convertem sedimentos em rocha consolidada, e o seu estudo chama-se litologia - ramo voltado à pesquisa das categorizações referentes aos tempos geológicos e seus processos de formação.

Essa mostra parte desse pressuposto, onde a produção contemporânea pode integrar a comunicação entre uma instituições de arte, o barro e as histórias e tradições que a circundam. Se Arévalo constitui sua identidade em parte pela relação com estas histórias monumentais que impactaram a atual forma do mundo ocidental, vide antigos moradores que por aqui passaram, tanto como Isabel de Castilla, personagem fundamental na gênese do processo de colonização que definiu as relações entre a Europa e as Américas, como também Íñigo López de Loyola, que viria a fundar La Compañía de Jesús, responsável pelo primeiro processo de educação que impactou a cultura global, a catequização.

Diante de distintos processos de violência perpetrados pela colonização, Ayla busca por ficções que nos libertam do jugo histórico e do peso das macro narrativas. Partindo do estudo do barro, ela investiga a composição geológica e a formulação histórica pautada por histórias grandiosas, indo a contrapelo no mergulho pelos microrrelatos que poderiam surgir do encontro com esse entorno. Pautada por escritos como La teoría de la bolsa de transporte de la ficción (1986)[1] de Ursula K. Le Guin, Ayla estabelece pequenos relatos que não se pautam por histórias da conquista, mas sim por exercícios especulativos oriundos da composição, cores, formas e texturas da paisagem de Arévalo.

Nesse sentido, a instalação site specific Una forma siempre húmeda (2022), articula o barro e a forma elementar da produção cerâmica - cabeça de touro -, primeiro gesto feito ao amassar e compactar o barro. Necessário e antecedente aos acervos cerâmicos que oferecem fagulhas de compreensão da origem da produção humana. É úmido, pois também busca associar-se ao início da vida, recordando da umidade que possibilitou a existência da primeira cianobactéria e suas transformações até um tetrápodes que abandonou seu contenedor aquático para aventurar-se sobre o solo. Ayla apresenta assim uma forma que capta o fluxo de água, umidificando a cabeça de touro que se localiza no interior, um rememoração formal da própria estrutura que a mantém.

Outra ode aos rios Adaja e Arevalillo é a instalação Alfarería del agua - incontenidoras márgenes (2022), que modifica a ideia do rio como um simples fluxo que margeia a cidade. A instalação consiste em cinco garrafas, onde duas revelam-se pela sua ausência, dando protagonismo e recordando o espaço ocupado por estes corpos cerâmicos que se posicionam nas extremidades dos rios. As garrafas atravessadas pelas águas que correm contêm em si fragmentos do conto A terceira margem do rio (1962) do escritor brasileiro Guimarães Rosa, que a partir de um estilo específico articula um tom regionalista e universal, abordando grandes dilemas da existência humana.

As paisagens e arquiteturas por sua vez, são novamente solicitadas como cerne da criação tanto do conjunto de notações que se reagrupam como múltiplos relevos de paredes e seus desenhos, como nos contenedores que sobrepostos aos ladrilhos de uma antiga alfareria da cidade (hoje inativa), e que contém em si, pequenas recordações da composição que circunda toda a zona. Alfarería del agua - revés fontanário revés (2022) é construída a partir de formas que remetem às tradicionais peças de cerâmica tidas como "alfareria del agua" (originalmente feitas para conter os mais diversos líquidos). Destas formas, Ayla elabora uma fonte que se desfaz a partir de seu contato com a água e sua materialidade de barro seco, uma escultura que antecede sua queima, ou seja, uma quase cerâmica como um contra-monumento que se esvanece. 

Reunidos assim, todos estes projetos revelam uma litologia empreendida pela artista, que busca a especulação e a ficção como motor para pensarmos o presente sob o qual caminhamos. Resultando em recordações do barro e da água, uma gênese da vida humana e um caminho para novas articulações da história como recipientes, pautadas pelo seu posicionamento no mundo e no ambiente. Não mais uma história de heróis, mas sim de pessoas e de seus entornos que possibilitam e mantêm a vida.

 

[1] Fonte: <https://arquitecturacontable.wordpress.com/2021/01/14/ursula-k-leguin-teoria-bolsa-para-llevar-cosas/>, acesso em novembro de 2022.

 

 

-------------------------------------------------------------------------------------

anêmonas do mar, placas tectônicas e uma gota de piche(das coisas que se movem muito lentas) - Residência Pivô pesquisa

Mônica Hoff

O barro toma a forma que você quiser. Você nem sabe estar fazendo apenas o que o barro quer”, dizia o poeta Paulo Leminski. Ayla Tavares sabe disso. “Esse barro que eu toco está aí há milhões de anos”, afirma a artista ao falar sobre sua relação com a cerâmica. “O grau zero da escrita é o pensamento”, complementa ao versar sobre a importância das palavras, e principalmente da poesia, em seu processo de criação. Numa busca constante pelo espanto, Ayla persegue o movimento lento, ou o lado oco da cerâmica e das palavras, o ponto exato em que a matéria se transforma em gramática e esta, em relação encarnada com a vida. “A nossa percepção do tempo, uma questão de memórias e amigdalas”, diz a artista. E entre peças de barro queimadas, inteiras ou cuidadosamente remendadas, e um pensamento dilatado em poesia, além de línguas vão surgindo outras formas de dizer o mesmo: vão nascendo anêmonas para dizer do lento e relevos para falar do dentro. Sobre a mesa de trabalho, palavras inéditas e peças inacabadas há milhões de tempos.

-------------------------------------------------------------------------------------

Sonantes

Aldones Nino

 

O trabalho de Ayla Tavares têm se desdobrado na direção de múltiplos experimentos relacionados às qualidades físicas dos artefatos e ativações ergonômicas multitemporais. Desde os registros de performances o corpo opaco e o objeto luminoso (2017), vídeo onde ela busca recuperar através da ativação corpórea, uma imagem fugidia de tempos passados. Nesse vídeo a artista persegue e desenha sombras, com interesse no tensionamento de materialidades e processos de ressignificações de espaços sagrados em pontos turísticos. Sua perseguição ao fugidio busca aproximar o material, o histórico, mutável e efêmero. Essas indagações se desdobram na série de desenhos sobre tecidos doméstico horizonte (2017), onde através de  rascunhos e horizontes hipotéticos ela cria objetos tridimensionais, que cortados na proporção de tampas de mesas, evocam locais de troca e convívio. Na busca dos rastros da subjetividade de moradores em composições e escolhas dispositivas. Em notações (2018), Ayla executa uma série de registros de  “objetos-ruínas”, que funcionam como uma materialização de uma gesto do improviso de uma ação, operando com composições de pedras que delimitam vagas de automóveis, como sacos de cimento dispostos na calçada, materiais sobrepostos e outros resíduos de obras e usos passageiros. Para além do desenho ela aglutina esses materiais sobrepostos, pensando características formais manuseando o desenho e a cerâmica.

Modelar a argila é gesto arcaico, ancestral, que evoca de maneira simbólica devaneios imemoriais. Modelar é ação dirigida à matéria e requer consciência do gesto, solicitando acúmulos, repetições, um acordo entre o barro e corpo. A cerâmica é uma das materialidades mais comuns encontradas em  sítios arqueológicos, habitual evidências da presença e da troca humana. Uma tecnologia empregada na produção e nos ritos, um canal de contatos culturais, rastros sobre comportamentos e alimentação e cotidiano. Ao mesmo tempo em que é uma das matérias-primas mais antigas utilizadas pelo ser humano para expressar suas subjetividades e manifestar sua devoção, a cerâmica está presente no desenvolvimento de novas tecnologias no campo da medicina em implantes de alta resistência, possuindo compatibilidade orgânica para reconstruir e substituir articulações. 

Artefatos cerâmicos diversos são exibidos e protegidos em pedestais e cúpulas em museus e coleções, geralmente muito distantes geograficamente e temporalmente de seus contextos de criação, assim sendo atribuídos funções utilitárias, rituais ou “não identificadas”. Através de sua pesquisa, Ayla estabelece um léxico formal obtendo massa poética plasmada em oposição a regulação e ordenação da experiência sensória, desenvolvendo assim sua série Sonantes (2018 - 2019). Série de artefatos que solicitam atenção sensorial, evocando o real enquanto ficção, bem como as possibilidades ergonômicas e gestuais, germinadas no processo de ressignificação da matéria. O objeto revela o uso do corpo partindo do estranhamento, apresentando possibilidades ergonômicas arcaicas e universais através da ação e relação do sujeito com a obra posta em exposição. 

A poética de Ayla Tavares aproxima seus interesses do professor de arqueologia da Brown University, Yanis Hamilakis, que dedica suas pesquisas à relação entre teoria e prática no campo da arqueologia, compreendendo-a como a responsável por ter priorizado - e priorizar - apenas a visão em detrimento aos outros sentidos enquanto parâmetro para entender o mundo. O nascimento da modernidade está atrelado a transição teórica operada por Descartes, que visou estabelecer a autonomia da razão, fundando assim epistemologias objetivas e quantitativas, que distanciaram-se cada vez mais da experiência sensorial e subjetiva, fato que repercutiu de forma basilar na filosofia e nas culturas das sociedades ocidentais. Esta mentalidade valorizou a visão e a audição incorpórea e autônoma. Em seu livro, La arqueología y los sentidos (2015), Yannis nos diz que a modernidade ocidental detêm

Una preocupación recurrente por las cuestiones metodológicas, lideradas por Descartes y su Discurso del método, elimina de cualquier saber que aspire a entrar en el elenco de las ciencias cualquier reminiscencia a cualidades primarias, a lo subjetivo, y aquí la experiencia sensorial y los afectos son unas de las primeras víctimas (HAMILAKIS, 2015).

Ao se deparar com os artefatos destituídos do engajamento corporal, Ayla busca formular novas relações e gestualidades. Sonantes é uma escuta que prescinde o tato e o espaço em que se insere. A posição corporal fica evidente à medida em que a série é disposta em diferentes distâncias e alturas. Através da escuta e do engajamento corporal é possível a apreensão e compartilhamento de uma temporalidade dilatada, plasmada na matéria-barro e reverenciada na proposição onde o oco passa a ser o local de passagem e fluxo - escuta do aqui e agora  o ruído externo é filtrado por essas formas variando em cada objeto. O objeto em cerâmica não permite ser queimado de forma compactada, para sua criação é imprescindível que sua moldagem seja feita sempre em torno de um vazio (sem esse oco a peça explodiria no forno). O oco, a falta, o vazio, o iato, o vago é essencial para que a forma exista. Assumindo assim uma centralidade em seus últimos trabalhos.

O trabalho de Ayla Tavares pretende investigar o ato de criar, de “esculpir” a coexistência da forma e do vazio; como um gesto impregnado de uma dimensão relacional - de compartilhamento; como uma necessidade primeira. A historiadora da arte Andressa Rocha, em seu texto Sinto as paredes do meu oco na presença do outro, afirma que; “Talvez seja essa a principal questão suscitada por ela, que convida os sujeitos a explorarem a própria estrutura da linguagem, estabelecendo uma relação com o que está dado e, sobretudo, com aquilo que falta” (ROCHA, 2019). 

Sua realocação da hierarquia dos sentidos têm continuidade na série de desenhos presentes na exposição. Ao mesmo tempo que a artista propõe uma escuta horizontal do barro, sua série de desenhos do Oco cumprem uma visão especulativa, subvertendo a lógico do desenho científico. Funcionando como fabulações em torno do espaço interior, uma arapuca para o olhar, alertando para o limite das bordas do cientificismo. Em sua poética o vazio é posicionado enquanto condição para a existência da forma, uma proposição de exercícios de arqueologia sensorial, tensionando  temas como labor, escuta, rito e tempo. Embora possam parecer projetos, seus desenhos são executados posteriormente à moldagem e queima das peças. Apontam para uma indagação sobre a infalibilidade do olhar, ou seja uma sombra anticartesiana capaz de revelar o oco e o objeto/matéria enquanto uma rede de nexos, propondo especulações ergonômicas e epistemes desviantes. 

-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

 

 

Sinto as paredes do meu oco na presença do outro¹

Andressa Rocha

 

Tal como afirma Pedro Paulo Gómez², “a colonialidade do poder, uma categoria elaborada por Aníbal Quijano (1999), permite mostrar que existe uma continuidade entre o passado colonial e o presente pós-colonial nos processos de representação de sujeitos coloniais”. Ayla Tavares, nesse sentido, assume sua posição enquanto artista e desenvolve sua poética em um processo que subverte a narrativa colonial: Sonantes dialoga com a história da arte brasileira – ainda subserviente aos chamados centros hegemônicos - por meio da retomada de uma visualidade vinculada à produção das sociedades ameríndias. Sua obra materializa em forma sensível o apontamento de Mauad³ de que a memória vive em permanente tensão entre a ausência e a presença: presença do presente que se lembra do passado desvanecido, mas também presença do passado que irrompe o presente e atualiza-o. Observa-se, por conseguinte, uma reconquista do tátil: o barro surge como uma presença indicial de vestígio da mão que é ação, cria e, nesse caso, pensa⁴. É possível afirmar que há um desejo de resistência e de permanência da forma, além de uma tentativa de reflexão acerca da matéria em virtude de seu histórico de função utilitária. A artista apresenta a obra sem pinturas – as quais indicariam seu modo de uso - recobrindo sua superfície. Trata-se, desse modo, de uma proposição que busca evidenciar o vazio necessário para sua elaboração. O oco surge aqui como dado que evoca uma relação com o ruído do ambiente no qual Sonantes se insere e com o som que a própria obra apresenta a partir do contato com os indivíduos. Com uma singularidade poética, Ayla evoca o jogo entre Eu/Outro. Talvez seja essa a principal questão suscitada por ela, que convida os sujeitos a explorarem a própria estrutura da linguagem, estabelecendo uma relação com o que está dado e, sobretudo, com aquilo que falta.

 

¹MAIOLINO, Anna Maria. Tu + Eu. In: ZEGHER, Catherine de (ed). Anna Maria Maiolino: Vida Afora / A Life Line, p.260. New York: Drawing Center, 2002.

²GÓMEZ, P.P. La paraoja del fin del colonialismo y la permanencia de la colonialidad. Calle 14, v.4, n.4, jan – junho 2010. Disponível em https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/3231097.pdf. Acessado em 19 abril, 2019.

³MAUAD, Ana M. História, Iconografia e Memória. In: SIMSON, Olga R. de M. Von (org.). Os Desafios Contemporâneos da História Oral. Campinas: UNICAMP/CMU, 1997.

⁴FOCILLON, Henri. Elogio da mão. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2012, p.6.

--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Ainda fazemos as coisas em grupo (Uma dança entre dois sóis)

Clarissa Diniz

Brígida Baltar

Ana Miguel

 

 

Ayla Tavares tem se interessado por fenômenos, imagens e sentidos que se dão no tempo - como a luz, a espera, o anoitecer, os caminhos, os fósseis. Seu fascínio pelo caráter constitutivo e mágico do tempo não se desvia, contudo, da fisicalidade, daquilo que a artista se põe a observar, estudar, catalogar: ao contrário, a matéria é a sua grande aliada na percepção dos movimentos daquilo que está sempre de passagem. É nesse sentido que a cerâmica emerge como protagonista em sua obra.

Terra mediada pela exposição ao calor, a queima da argila performa o tempo em ação. Assim impregnada, a cerâmica se torna uma espécie de evocação daquele que é o próprio calor-tempo: o sol. Instalação conjuga formas diversas de representação e interpretação dessa estrela e suas forças (o thanaka de Myanmar, o olho pineal (Bataille), equações do tempo, dentre outras), Uma dança entre dois sóis dá a ver também os interesses metodológicos de Ayla Tavares entre a arqueologia, a antropologia, a astronomia, a literatura, a física, a matemática. Coreografias que habitam o intervalo entre um sol que se levante e o outro que se deita.

 

--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

bottom of page