Alfarería del agua
Aldones Nino
Durante os meses de setembro a dezembro de 2022, Collegium iniciou seu programa de residências “Entre Tiempos”, contando com a colaboração do Instituto Inclusartiz, a partir do apoio à investigação da artista Ayla Tavares. Durante esses meses, Ayla propôs vários pontos de contato, tanto com a tradição da cerâmica na região, como com o entorno histórico, paisagístico e fluvial de Arévalo. Essa mostra tem como interesse apresentar os projetos desenvolvidos no seu ateliê situado no antigo coro da Igreja de San Martin, situada na Plaza de la Villa de Arévalo.
Parte central deste processo foi a colaboração com a Alfareria Hernandez que integra a Federação das Organizações Artesãs de Castilla y León (FOACAL) e o intenso processo de aprendizado junto a ceramista Vicen Hernandez. Esta alfareria vem transmitindo o ofício há gerações, colaborando assim com a construção e a manutenção da tradição cerâmica, e está localizada em Cespedosa de Tormes, município que conta com uma população de 585 habitantes. Esse projeto incluiu também jornadas de trabalho no ateliê do escultor Julio Galán, em Arévalo, que há mais de três décadas realiza esculturas monumentais que se espalham pelo entorno.
Litificação é um conjunto de processos que convertem sedimentos em rocha consolidada, e o seu estudo chama-se litologia - ramo voltado à pesquisa das categorizações referentes aos tempos geológicos e seus processos de formação.
Essa mostra parte desse pressuposto, onde a produção contemporânea pode integrar a comunicação entre uma instituições de arte, o barro e as histórias e tradições que a circundam. Se Arévalo constitui sua identidade em parte pela relação com estas histórias monumentais que impactaram a atual forma do mundo ocidental, vide antigos moradores que por aqui passaram, tanto como Isabel de Castilla, personagem fundamental na gênese do processo de colonização que definiu as relações entre a Europa e as Américas, como também Íñigo López de Loyola, que viria a fundar La Compañía de Jesús, responsável pelo primeiro processo de educação que impactou a cultura global, a catequização.
Diante de distintos processos de violência perpetrados pela colonização, Ayla busca por ficções que nos libertam do jugo histórico e do peso das macro narrativas. Partindo do estudo do barro, ela investiga a composição geológica e a formulação histórica pautada por histórias grandiosas, indo a contrapelo no mergulho pelos microrrelatos que poderiam surgir do encontro com esse entorno. Pautada por escritos como La teoría de la bolsa de transporte de la ficción (1986)[1] de Ursula K. Le Guin, Ayla estabelece pequenos relatos que não se pautam por histórias da conquista, mas sim por exercícios especulativos oriundos da composição, cores, formas e texturas da paisagem de Arévalo.
Nesse sentido, a instalação site specific Una forma siempre húmeda (2022), articula o barro e a forma elementar da produção cerâmica - cabeça de touro -, primeiro gesto feito ao amassar e compactar o barro. Necessário e antecedente aos acervos cerâmicos que oferecem fagulhas de compreensão da origem da produção humana. É úmido, pois também busca associar-se ao início da vida, recordando da umidade que possibilitou a existência da primeira cianobactéria e suas transformações até um tetrápodes que abandonou seu contenedor aquático para aventurar-se sobre o solo. Ayla apresenta assim uma forma que capta o fluxo de água, umidificando a cabeça de touro que se localiza no interior, um rememoração formal da própria estrutura que a mantém.
Outra ode aos rios Adaja e Arevalillo é a instalação Alfarería del agua - incontenidoras márgenes (2022), que modifica a ideia do rio como um simples fluxo que margeia a cidade. A instalação consiste em cinco garrafas, onde duas revelam-se pela sua ausência, dando protagonismo e recordando o espaço ocupado por estes corpos cerâmicos que se posicionam nas extremidades dos rios. As garrafas atravessadas pelas águas que correm contêm em si fragmentos do conto A terceira margem do rio (1962) do escritor brasileiro Guimarães Rosa, que a partir de um estilo específico articula um tom regionalista e universal, abordando grandes dilemas da existência humana.
As paisagens e arquiteturas por sua vez, são novamente solicitadas como cerne da criação tanto do conjunto de notações que se reagrupam como múltiplos relevos de paredes e seus desenhos, como nos contenedores que sobrepostos aos ladrilhos de uma antiga alfareria da cidade (hoje inativa), e que contém em si, pequenas recordações da composição que circunda toda a zona. Alfarería del agua - revés fontanário revés (2022) é construída a partir de formas que remetem às tradicionais peças de cerâmica tidas como "alfareria del agua" (originalmente feitas para conter os mais diversos líquidos). Destas formas, Ayla elabora uma fonte que se desfaz a partir de seu contato com a água e sua materialidade de barro seco, uma escultura que antecede sua queima, ou seja, uma quase cerâmica como um contra-monumento que se esvanece.
Reunidos assim, todos estes projetos revelam uma litologia empreendida pela artista, que busca a especulação e a ficção como motor para pensarmos o presente sob o qual caminhamos. Resultando em recordações do barro e da água, uma gênese da vida humana e um caminho para novas articulações da história como recipientes, pautadas pelo seu posicionamento no mundo e no ambiente. Não mais uma história de heróis, mas sim de pessoas e de seus entornos que possibilitam e mantêm a vida.
[1] Fonte: <https://arquitecturacontable.wordpress.com/2021/01/14/ursula-k-leguin-teoria-bolsa-para-llevar-cosas/>, acesso em novembro de 2022.
anêmonas do mar, placas tectônicas e uma gota de piche(das coisas que se movem muito lentas) - Residência Pivô pesquisa
Mônica Hoff
O barro toma a forma que você quiser. Você nem sabe estar fazendo apenas o que o barro quer”, dizia o poeta Paulo Leminski. Ayla Tavares sabe disso. “Esse barro que eu toco está aí há milhões de anos”, afirma a artista ao falar sobre sua relação com a cerâmica. “O grau zero da escrita é o pensamento”, complementa ao versar sobre a importância das palavras, e principalmente da poesia, em seu processo de criação. Numa busca constante pelo espanto, Ayla persegue o movimento lento, ou o lado oco da cerâmica e das palavras, o ponto exato em que a matéria se transforma em gramática e esta, em relação encarnada com a vida. “A nossa percepção do tempo, uma questão de memórias e amigdalas”, diz a artista. E entre peças de barro queimadas, inteiras ou cuidadosamente remendadas, e um pensamento dilatado em poesia, além de línguas vão surgindo outras formas de dizer o mesmo: vão nascendo anêmonas para dizer do lento e relevos para falar do dentro. Sobre a mesa de trabalho, palavras inéditas e peças inacabadas há milhões de tempos.
Sonantes
Aldones Nino
O trabalho de Ayla Tavares têm se desdobrado na direção de múltiplos experimentos relacionados às qualidades físicas dos artefatos e ativações ergonômicas multitemporais. Desde os registros de performances o corpo opaco e o objeto luminoso (2017), vídeo onde ela busca recuperar através da ativação corpórea, uma imagem fugidia de tempos passados. Nesse vídeo a artista persegue e desenha sombras, com interesse no tensionamento de materialidades e processos de ressignificações de espaços sagrados em pontos turísticos. Sua perseguição ao fugidio busca aproximar o material, o histórico, mutável e efêmero. Essas indagações se desdobram na série de desenhos sobre tecidos doméstico horizonte (2017), onde através de rascunhos e horizontes hipotéticos ela cria objetos tridimensionais, que cortados na proporção de tampas de mesas, evocam locais de troca e convívio. Na busca dos rastros da subjetividade de moradores em composições e escolhas dispositivas. Em notações (2018), Ayla executa uma série de registros de “objetos-ruínas”, que funcionam como uma materialização de uma gesto do improviso de uma ação, operando com composições de pedras que delimitam vagas de automóveis, como sacos de cimento dispostos na calçada, materiais sobrepostos e outros resíduos de obras e usos passageiros. Para além do desenho ela aglutina esses materiais sobrepostos, pensando características formais manuseando o desenho e a cerâmica.
Modelar a argila é gesto arcaico, ancestral, que evoca de maneira simbólica devaneios imemoriais. Modelar é ação dirigida à matéria e requer consciência do gesto, solicitando acúmulos, repetições, um acordo entre o barro e corpo. A cerâmica é uma das materialidades mais comuns encontradas em sítios arqueológicos, habitual evidências da presença e da troca humana. Uma tecnologia empregada na produção e nos ritos, um canal de contatos culturais, rastros sobre comportamentos e alimentação e cotidiano. Ao mesmo tempo em que é uma das matérias-primas mais antigas utilizadas pelo ser humano para expressar suas subjetividades e manifestar sua devoção, a cerâmica está presente no desenvolvimento de novas tecnologias no campo da medicina em implantes de alta resistência, possuindo compatibilidade orgânica para reconstruir e substituir articulações.
Artefatos cerâmicos diversos são exibidos e protegidos em pedestais e cúpulas em museus e coleções, geralmente muito distantes geograficamente e temporalmente de seus contextos de criação, assim sendo atribuídos funções utilitárias, rituais ou “não identificadas”. Através de sua pesquisa, Ayla estabelece um léxico formal obtendo massa poética plasmada em oposição a regulação e ordenação da experiência sensória, desenvolvendo assim sua série Sonantes (2018 - 2019). Série de artefatos que solicitam atenção sensorial, evocando o real enquanto ficção, bem como as possibilidades ergonômicas e gestuais, germinadas no processo de ressignificação da matéria. O objeto revela o uso do corpo partindo do estranhamento, apresentando possibilidades ergonômicas arcaicas e universais através da ação e relação do sujeito com a obra posta em exposição.
A poética de Ayla Tavares aproxima seus interesses do professor de arqueologia da Brown University, Yanis Hamilakis, que dedica suas pesquisas à relação entre teoria e prática no campo da arqueologia, compreendendo-a como a responsável por ter priorizado - e priorizar - apenas a visão em detrimento aos outros sentidos enquanto parâmetro para entender o mundo. O nascimento da modernidade está atrelado a transição teórica operada por Descartes, que visou estabelecer a autonomia da razão, fundando assim epistemologias objetivas e quantitativas, que distanciaram-se cada vez mais da experiência sensorial e subjetiva, fato que repercutiu de forma basilar na filosofia e nas culturas das sociedades ocidentais. Esta mentalidade valorizou a visão e a audição incorpórea e autônoma. Em seu livro, La arqueología y los sentidos (2015), Yannis nos diz que a modernidade ocidental detêm
Una preocupación recurrente por las cuestiones metodológicas, lideradas por Descartes y su Discurso del método, elimina de cualquier saber que aspire a entrar en el elenco de las ciencias cualquier reminiscencia a cualidades primarias, a lo subjetivo, y aquí la experiencia sensorial y los afectos son unas de las primeras víctimas (HAMILAKIS, 2015).
Ao se deparar com os artefatos destituídos do engajamento corporal, Ayla busca formular novas relações e gestualidades. Sonantes é uma escuta que prescinde o tato e o espaço em que se insere. A posição corporal fica evidente à medida em que a série é disposta em diferentes distâncias e alturas. Através da escuta e do engajamento corporal é possível a apreensão e compartilhamento de uma temporalidade dilatada, plasmada na matéria-barro e reverenciada na proposição onde o oco passa a ser o local de passagem e fluxo - escuta do aqui e agora o ruído externo é filtrado por essas formas variando em cada objeto. O objeto em cerâmica não permite ser queimado de forma compactada, para sua criação é imprescindível que sua moldagem seja feita sempre em torno de um vazio (sem esse oco a peça explodiria no forno). O oco, a falta, o vazio, o iato, o vago é essencial para que a forma exista. Assumindo assim uma centralidade em seus últimos trabalhos.
O trabalho de Ayla Tavares pretende investigar o ato de criar, de “esculpir” a coexistência da forma e do vazio; como um gesto impregnado de uma dimensão relacional - de compartilhamento; como uma necessidade primeira. A historiadora da arte Andressa Rocha, em seu texto Sinto as paredes do meu oco na presença do outro, afirma que; “Talvez seja essa a principal questão suscitada por ela, que convida os sujeitos a explorarem a própria estrutura da linguagem, estabelecendo uma relação com o que está dado e, sobretudo, com aquilo que falta” (ROCHA, 2019).
Sua realocação da hierarquia dos sentidos têm continuidade na série de desenhos presentes na exposição. Ao mesmo tempo que a artista propõe uma escuta horizontal do barro, sua série de desenhos do Oco cumprem uma visão especulativa, subvertendo a lógico do desenho científico. Funcionando como fabulações em torno do espaço interior, uma arapuca para o olhar, alertando para o limite das bordas do cientificismo. Em sua poética o vazio é posicionado enquanto condição para a existência da forma, uma proposição de exercícios de arqueologia sensorial, tensionando temas como labor, escuta, rito e tempo. Embora possam parecer projetos, seus desenhos são executados posteriormente à moldagem e queima das peças. Apontam para uma indagação sobre a infalibilidade do olhar, ou seja uma sombra anticartesiana capaz de revelar o oco e o objeto/matéria enquanto uma rede de nexos, propondo especulações ergonômicas e epistemes desviantes.
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Sinto as paredes do meu oco na presença do outro¹
Andressa Rocha
Tal como afirma Pedro Paulo Gómez², “a colonialidade do poder, uma categoria elaborada por Aníbal Quijano (1999), permite mostrar que existe uma continuidade entre o passado colonial e o presente pós-colonial nos processos de representação de sujeitos coloniais”. Ayla Tavares, nesse sentido, assume sua posição enquanto artista e desenvolve sua poética em um processo que subverte a narrativa colonial: Sonantes dialoga com a história da arte brasileira – ainda subserviente aos chamados centros hegemônicos - por meio da retomada de uma visualidade vinculada à produção das sociedades ameríndias. Sua obra materializa em forma sensível o apontamento de Mauad³ de que a memória vive em permanente tensão entre a ausência e a presença: presença do presente que se lembra do passado desvanecido, mas também presença do passado que irrompe o presente e atualiza-o. Observa-se, por conseguinte, uma reconquista do tátil: o barro surge como uma presença indicial de vestígio da mão que é ação, cria e, nesse caso, pensa⁴. É possível afirmar que há um desejo de resistência e de permanência da forma, além de uma tentativa de reflexão acerca da matéria em virtude de seu histórico de função utilitária. A artista apresenta a obra sem pinturas – as quais indicariam seu modo de uso - recobrindo sua superfície. Trata-se, desse modo, de uma proposição que busca evidenciar o vazio necessário para sua elaboração. O oco surge aqui como dado que evoca uma relação com o ruído do ambiente no qual Sonantes se insere e com o som que a própria obra apresenta a partir do contato com os indivíduos. Com uma singularidade poética, Ayla evoca o jogo entre Eu/Outro. Talvez seja essa a principal questão suscitada por ela, que convida os sujeitos a explorarem a própria estrutura da linguagem, estabelecendo uma relação com o que está dado e, sobretudo, com aquilo que falta.
¹MAIOLINO, Anna Maria. Tu + Eu. In: ZEGHER, Catherine de (ed). Anna Maria Maiolino: Vida Afora / A Life Line, p.260. New York: Drawing Center, 2002.
²GÓMEZ, P.P. La paraoja del fin del colonialismo y la permanencia de la colonialidad. Calle 14, v.4, n.4, jan – junho 2010. Disponível em https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/3231097.pdf. Acessado em 19 abril, 2019.
³MAUAD, Ana M. História, Iconografia e Memória. In: SIMSON, Olga R. de M. Von (org.). Os Desafios Contemporâneos da História Oral. Campinas: UNICAMP/CMU, 1997.
⁴FOCILLON, Henri. Elogio da mão. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2012, p.6.
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Ainda fazemos as coisas em grupo (Uma dança entre dois sóis)
Clarissa Diniz
Brígida Baltar
Ana Miguel
Ayla Tavares tem se interessado por fenômenos, imagens e sentidos que se dão no tempo - como a luz, a espera, o anoitecer, os caminhos, os fósseis. Seu fascínio pelo caráter constitutivo e mágico do tempo não se desvia, contudo, da fisicalidade, daquilo que a artista se põe a observar, estudar, catalogar: ao contrário, a matéria é a sua grande aliada na percepção dos movimentos daquilo que está sempre de passagem. É nesse sentido que a cerâmica emerge como protagonista em sua obra.
Terra mediada pela exposição ao calor, a queima da argila performa o tempo em ação. Assim impregnada, a cerâmica se torna uma espécie de evocação daquele que é o próprio calor-tempo: o sol. Instalação conjuga formas diversas de representação e interpretação dessa estrela e suas forças (o thanaka de Myanmar, o olho pineal (Bataille), equações do tempo, dentre outras), Uma dança entre dois sóis dá a ver também os interesses metodológicos de Ayla Tavares entre a arqueologia, a antropologia, a astronomia, a literatura, a física, a matemática. Coreografias que habitam o intervalo entre um sol que se levante e o outro que se deita.
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